Medidas alternativas à prisão preventiva: não custa lembrar
* Cristiane Battaglia O atual cenário jurídico (ou seria político-jurídico?) do país tem me feito pensar muito na Lei nº 12.403/2011. Explico: a Lei nº 12.403/2011, publicada em 04 de maio de 2011 (portanto relativamente recente), alterou os dispositivos do Código de Processo Penal atinentes à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares [1]. Em linhas gerais, a norma reforçou o caráter excepcional das medidas cautelares, especialmente para a decretação e manutenção da prisão preventiva. A prisão preventiva – que é medida processual, e não tem caráter de pena – só poderá ser decretada “em último caso”. EM ÚLTIMO CASO, diz a Lei. Para tanto, a Lei trouxe alternativas à “impunidade” [2], prevendo medidas restritivas de direito (como apreensão de passaporte ou proibição de exercício de determinada atividade de natureza econômica ou financeira), que deverão ser decretadas primeiro, sendo substituídas pela prisão apenas no caso de não se mostrarem eficazes na tentativa de acautelar a investigação criminal, evitar o cometimento de nova infração ou a frustração da aplicação da lei penal. A primeira alteração trazida pela Lei foi transmudar o conteúdo do art. 282 para o artigo seguinte, inserindo, como primeira disposição do Título IX (cuja denominação, também alterada, passou a ser “Da Prisão, das Medidas Cautelares e da Liberdade Provisória”) os critérios “necessidade” e “adequação” para a adoção das medidas processuais. A alteração procura estabelecer parâmetros de proporcionalidade ao juiz, reafirmando critérios legais e constitucionais inerentes à própria condição de cautelaridade das medidas. Ainda que aparentemente desnecessário, considerando a necessidade de uma interpretação sistemática da Lei, o artigo reforça a unicidade do ordenamento jurídico brasileiro, que tem como base um mesmo princípio fundamental [3]: a dignidade da pessoa humana. A Lei prevê, ainda, que a prisão preventiva deve ser substituída por prisão domiciliar em casos específicos [4], e o instituto da finança vem fortalecido, uma vez que qualquer crime torna-se passível de sua concessão, com exceção de alguns casos específicos, previstos na Lei (sendo que os incisos IV e V do art. 323 foram revogados, excluindo-se, deste rol, portanto, os casos em que os crimes tiverem causado clamor público ou sido cometidos com violência ou grave ameaça). A Lei inova, também, ao prever, expressamente, o exercício do contraditório e da ampla defesa em sede de medidas restritivas. Considerando que decorre de um dos 08 (oito) Projetos para alteração do Código de Processo Penal apresentados ao Congresso Nacional por uma Comissão presidida pela Dra. Ada Pellegrini Grinover, a norma tem, claramente, caráter garantidor. Ao contemplar novas exigências para a decretação das medidas cautelares, a Lei reafirma velhas garantias. Lei em vigor, passados alguns anos, o que mudou? A meu ver, nada. Prisões preventivas continuam sendo decretadas para punir antecipadamente, trazendo alento imediato ao clamor social. Prisões preventivas continuam sendo decretadas à completa revelia de seu caráter garantidor do processo. E mais, prisões preventivas assumem, agora, uma nova função: garantir a produção de prova processual, através de delações premiadas. E que preso não “delataria” verdades ou mentiras, para se livrar do cárcere? Não há “técnica” mais inteligente, pois coloca em cheque sentimentos e instintos mais primitivos do ser humano: a sobrevivência, a dignidade, a liberdade. Basta que um crime seja noticiado e cause incômodo aos cidadãos, seja por seu resultado, seja pela condição abastada de seu suposto autor, para que o Judiciário decrete sua prisão processual, assim, como a mais eficaz e célere das punições (lembrando que, muitas vezes, em caso de condenação e adequada aplicação da pena, a privação da liberdade, imposta previamente através da prisão preventiva, sequer seria aplicada). E todos aplaudem. Não se pode negar que o contexto econômico, cultural e político de cada sociedade estabelece os parâmetros de sua criminalidade que, por sua vez, impõem a construção e a execução do direito penal, para maior eficácia deste último. Esta é a utilidade social do direito penal. Por outro lado, o direito penal assume inegável caráter modificador da realidade, sendo o Poder Judiciário o instrumento de reconhecimento material dos valores previstos, abstratamente, na Constituição. É, portanto, justamente no Poder Judiciário que se depositam as esperanças de transformação do status quo. Desde as pioneiras concepções de Liszt acerca de uma enciclopédia das ciências criminais [5], o pensamento jurídico-penal volta-se para a conclusão de que a dogmática penal deve estar afinada com a realidade socioeconômica e cultural da coletividade em que vigora. O que não se confunde, logicamente, com estabelecer parâmetros a partir dos reclamos da sociedade imediatista, sob pena de se negligenciar garantias fundamentais duramente conquistadas. A política criminal deve ter como diretriz a valoração exterior do sistema, colocando sob constante avaliação os custos e consequências das atividades legislativa e judiciária penal, porém deve estar sempre pautada nos ideais do Estado em que atua (no caso do Brasil, um Estado Democrático de Direito). Aquela “ideia de fim do direito penal” é a estrela guia da política criminal, enquanto o código penal, como “magna carta do delinquente”, de acordo com a expressa declaração de Liszt, protege “não a coletividade, mas o indivíduo que contra ela se levantou”, concedendo a este o direito “de só ser punido sob os pressupostos e dentro dos limites legais” [6]. No Brasil, a política criminal parece perder-se em saídas emergenciais e cada vez mais rígidas para a criminalidade, apresentando soluções repressivas inócuas (que sequer operam para a diminuição da delinquência), além de serem responsáveis pela constante sensação de desigualdade, também ensejadora do aumento da criminalidade (tanto de poder, em vista da impunidade; quanto de violência, diante do afastamento das políticas estatais de bem estar social). O que se vê, com isso, é a adoção de novos “procedimentos” sequer previstos, métodos levados a efeito ainda que em clara afronta à Constituição Federal e aos direitos humanos, enfim, métodos punitivos criminosos por si mesmos – ou, no mínimo, ilegítimos. Ignora-se leis, e a população aplaude. O “bandido” é linchado na rua, e a população filma. O ladrão perde os dedos em uma perseguição policial e minha (ex) amiga posta no Facebook o registro do momento em que o membro foi arrancado. É estarrecedor. Eu, advogada, defensora dos direitos humanos (sim, presos são humanos) e das garantias fundamentais dos acusados (sim, acusados também têm direitos), tenho medo. Tenho medo das pessoas, de sua sede por vingança. Tenho medo até de ser apedrejada na porta do fórum por defender alguém malquisto (já vimos isso por aqui!). Tenho medo desse país que avança na legislação, mas retrocede na aplicação legal. Tenho medo dos métodos repressivos adotados hoje neste país, tão ilegítimos, quanto ineficazes. * Cristiane Battaglia é sócia do escritório Battaglia & Vidilli Advogados, especializado na área penal. Foi indicada, no Anuário Análise Advocacia 500, edição 2015, como uma das advogadas mais admiradas no setor de Comunicação. Graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é especialista em Direito Penal Econômico e mestre em Direito Penal, com a dissertação “Sociedade e Legitimação do Direito Penal”. [2] O termo impunidade é tecnicamente incorreto para se referir à medidas cautelares ou processuais, uma vez que somente a prisão-pena presta-se a punir. De toda forma, ele bem se encaixa na interpretação dada ao tema “prisão preventiva X liberdade do acusado” pela maioria da população: “Bandido deve ser imediatamente preso; do contrário, saiu impune”. [3] Ou, em uma definição Kelseniana, uma “norma hipotética fundamental”. [4] A Lei utiliza o verbo “poderá”, mas a substituição se impõe, não havendo situação fática específica militante em sentido contrário. [5] Liszt contrapôs o método jurídico estrito de construção do delito aos princípios empíricos com base nos quais se tratam os comportamentos desviantes. A política criminal deveria conceber os métodos racionais (dentro de uma concepção social) de combate à criminalidade, enquanto ao direito penal caberia a função liberal-garantística de assegurar uniformidade de aplicação da lei e a liberdade individual do próprio delinquente, contra quem se volta o direito penal (Política criminal e sistema jurídico-penal, p. 1 e ss.). [6] ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, p. 3. Voltar... |
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